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Para crime, o estado do artefato não importa

Por Imprensa (segunda-feira, 8/11/2010)
Atualizado em 8 de novembro de 2010

Por Fernando Capez

Recentemente a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, reformulando antigo posicionamento, passou a se pronunciar no sentido de que, para o perfazimento do crime de porte de arma de fogo – artigos 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento -, não importa se o artefato está ou não municiado ou, ainda, se apresenta regular funcionamento.

Com base nessa nova linha diretriz albergada pela aludida Turma,  nos diversos arestos referidos, serão reputadas criminosas as condutas de: (a) portar arma sem munição; (b) portar arma ineficaz para o disparo; (c) portar arma de brinquedo; e (c) portar  munição isoladamente.

O venerável entendimento, no entanto, é passível de questionamento, pois considera que o perigo pode ser presumido de modo absoluto, de maneira a considerar delituosos comportamentos totalmente ineficazes de ofender o interesse penalmente tutelado, menoscabando o chamado crime impossível, em que a ação jamais poderá levar à lesão ou à ameaça de lesão do bem jurídico, em face da impropriedade absoluta do objeto material, ou à ineficácia absoluta do meio empregado.

Por essa razão, analisaremos aqui cada uma das referidas situações, primeiramente, à luz da antiga jurisprudência da Egrégia Corte e de outros tribunais, e, posteriormente, sob a perspectiva da doutrina.

O porte de arma sem munição

Segundo anterior interpretação sedimentada pela 1ª Turma do STF, haveria a  atipicidade do porte de arma desmuniciada  e sem que o agente tivesse nas circunstâncias a pronta disponibilidade de munição, à luz dos princípios da lesividade e da ofensividade, porquanto incapaz a conduta de gerar lesão efetiva ou potencial à incolumidade pública. Assim, decidiu-se que:  (a) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (b) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica.

O porte de arma ineficaz

Da mesma forma que a arma desmuniciada,  sobredita Turma, no RHC 81057/SP, vinha se manifestando no sentido da não configuração do tipo penal do porte de arma de fogo inapta para disparo ou de arma de brinquedo, pois “Para a teoria moderna – que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso – o cuidar-se de crime de mera conduta – no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação – não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato”. Com efeito, “na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo.  Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça – pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos – da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena”.

Porte de munição isoladamente

Havia julgados no sentido de que, embora a conduta estivesse formal¬mente prevista na Lei 10.826/03, a ausência de potencialidade lesiva conduziria à atipicidade, porque, do contrário, haveria violação ao princípio da ofensividade. Nesse sentido: “Artefato que não oferece ofensividade à incolumidade pública, uma vez que a munição, por si só, não gera perigo algum, pelo fato de que não pode ser utilizada sozinha” (TJRS, Apelação Crime n. 70013631122, Sexta Câmara Criminal, Rel. Min. Paulo Moacir Aguiar Vieira, Julgado em 23/03/2006). Na mesma linha: TJRS, Apelação Crime n. 70012863270, Sétima Câmara Criminal, Rel. Min. Nereu José Giacomolli, Julgado em 13/10/2005; TJRS, Apelação Crime n. 70012651477, Sexta Câmara Criminal, Rel. Des. João Batista Marques Tovo, Julgado em 06/10/2005. Do mesmo modo, já havia se pronunciado a 1ª Turma do STF, “I – Paciente que guardava no interior de sua residência 7 (sete) cartuchos munição de uso restrito, como recordação do período em que foi sargento do Exército. II – Conduta formalmente típica, nos termos do art. 16 da Lei 10.826/03. III – Inexistência de potencialidade lesiva da munição apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos. IV – Ordem concedida. (STF,  1ª Turma, HC 96532/RS,  Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06/10/2009, DJE 27/11/2009)

A nova jurisprudência do STF

Consoante o novo escólio sedimentado pela 1ª Turma do STF, nos acórdãos já mencionados, haverá a configuração de crime em todas as situações acima aludidas, na medida em que o Estatuto do Desarmamento, em seu artigo 14, tipificou criminalmente a simples conduta de portar munição, a qual, isoladamente, ou seja, sem a arma, não possui qualquer potencial ofensivo.

Além do que, segundo a Egrégia Corte, a objetividade jurídica dos delitos previstos na Lei transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e de todo o corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que ele propicia.

Por derradeiro, em conformidade com essa inovadora diretriz, passou a ser dispensável a confecção de laudo pericial para aferição da materialidade do delito.

Críticas ao posicionamento do STF

Tal entendimento é passível de questionamento, pois o perigo não pode ser presumido de modo absoluto, de maneira a considerar criminosas condutas totalmente ineficazes de ofender o interesse penalmente tutelado.

O bem jurídico precipuamente tutelado pela Lei 10.826/2003 é a incolumidade pública. Em última análise, o que o Diploma Legal pretende proteger é o direito à vida, à integridade corporal, e, com isso, garantir a segurança do cidadão em todos os aspectos. Para atingir esse objetivo, o legislador procurou coibir o ataque a tão relevantes interesses de modo bastante amplo, punindo a conduta perigosa ainda em seu estágio embrionário. Com efeito, tipifica-se a posse ilegal de arma de fogo, o porte e o transporte dessa arma em via pública, o disparo, o comércio e o tráfico de tais artefatos, com vistas a impedir que tais comportamentos, restando impunes, evoluam até se transformar em efetivos ataques. Em outras palavras, pune-se o perigo, antes que se convole em dano.

Perigo abstrato ou presumido é aquele cuja existência dispensa a demonstração efetiva de que a vítima ficou exposta a uma situação concreta de risco. Contrapõe-se ao perigo concreto, que exige a comprovação de que pessoa determinada ou pessoas determinadas ficaram sujeitas a um risco real de lesão. Trata-se de situação de real modificação no mundo exterior, perceptível naturalisticamente e consistente na alteração das condições de intangibilidade do bem existentes antes da prática da conduta. O perigo concreto deflui de dada situação objetiva em que o comportamento humano gerou uma possibilidade concreta de destruição do bem jurídico tutelado, até então não existente (antes da conduta não havia risco de lesão, e depois se constatou o surgimento dessa possibilidade).

Não é o que ocorre com os delitos previstos nos artigos 12 a 18 da Lei 10.826/2003, cujos tipos penais não mencionam, em momento algum, como elemento necessário à configuração típica, a prova da efetiva exposição de outrem a risco. Basta a realização da conduta, sendo desnecessária a avaliação subsequente sobre a ocorrência, in casu, de efetivo perigo à coletividade. Assim, por exemplo, um sujeito que sai à noite perambulando pelas ruas com uma arma de fogo na cinta, sem autorização para portá-la, cometerá a infração prevista nos arts. 14 (arma de uso permitido) ou 16 (arma de uso proibido), independentemente de se comprovar que uma pessoa determinada ficou exposta a situação de perigo. Não fosse assim e o autor de tão grave infração restaria impune, bastando alegar que não havia ninguém por perto, para ver-se livre da imputação.

Por outro lado, isso não significa que a lei possa presumir o perigo em qualquer conduta. Senão, vejamos. Na hipótese de arma absolutamente inapta a efetuar disparos, o fato será atípico, não porque não se logrou comprovar a efetiva exposição de alguém a uma situação concreta de risco, mas porque a conduta jamais poderá levar a integridade corporal de alguém a um risco de lesão. A lei não pode presumir a existência de perigo para a vida, na ação de golpear o peito de um adulto com um palito de fósforo; não pode presumir que a ingestão de substância abortiva é capaz de colocar em risco a vida intrauterina de mulher que não esteja grávida; não pode presumir que a vida já inexistente de um cadáver foi ameaçada por um atirador mal informado; não pode, enfim, presumir que o porte de arma totalmente ineficaz para produzir disparos seja capaz de ameaçar a coletividade, de reduzir o seu nível de segurança. Evidentemente, nesta última hipótese, estaremos diante de um crime impossível pela ineficácia absoluta do objeto material (CP, artigo 17). A lei só pode presumir o perigo onde houver, em tese, possibilidade de ele ocorrer. Quando, de antemão, já se verifica que a conduta jamais poderá colocar o interesse tutelado em risco, não há como presumir o perigo. Em suma, não existe crime de perigo quando tal perigo for impossível. Coisa bem diferente é sustentar que uma conduta em tese apta a colocar em risco outras pessoas não seja considerada típica apenas porque não se comprovou a exposição de pessoas determinadas a situação de perigo concreto.

É certo que o princípio da ofensividade não deve ser empregado para tornar obrigatória a comprovação do perigo, mas para tornar atípicos os comportamentos absolutamente incapazes de lesar o bem jurídico. É a aplicação pura e simples do artigo 17 do CP, que trata do chamado crime impossível (também conhecido por tentativa inidônea, que é aquela que jamais pode dar certo). Assim, se, por exemplo, um casal de namorados pratica atos libidinosos em local ermo e em horário de nenhuma circulação de pessoas, não se pode falar em ato obsceno, uma vez que o bem jurídico “pudor da coletividade” não foi sequer exposto a uma situação real de perigo. Quando o artigo 233 do CP tipifica o delito em questão, pressupõe que a conduta tenha idoneidade para, ao menos, submeter o interesse social tutelado a algum risco palpável. Se é impossível o risco de lesão ao bem jurídico, não existe crime. Do mesmo modo, se o sujeito mantém arma de fogo dentro de casa, sem ter o registro legal do artefato, está realizando uma conduta descrita como delito pelo artigo 12 do Estatuto do Desarmamento. No entanto, se essa arma mantida ilegalmente dentro de casa estiver descarregada, em um baú trancado no sótão da edícula, no fundo do quintal, não se poderá falar na ocorrência de ilícito penal, uma vez que, nessa hipótese, a conduta jamais redundará em redução do nível de segurança da coletividade. Presumir perigo não significa inventar perigo onde este jamais pode ocorrer. Perigo presumido não é sinônimo de perigo impossível.

Em suma, entendemos que a ofensividade ou lesividade é um princípio que deve ser aceito, por se tratar de princípio constitucional do direito penal, diretamente derivado do princípio da dignidade humana (CF, artigo 1º, III). Sua aplicação, no entanto, não pode ter o condão de abolir totalmente os chamados crimes de perigo abstrato, mas tão somente temperar o rigor de uma presunção absoluta e inflexível. A ofensividade deve ser empregada para afastar as hipóteses de crime impossível, em que o comportamento humano jamais poderá levar o bem jurídico a lesão ou a exposição a risco de lesão.  No mais, deve-se respeitar a legítima opção política do legislador de resguardar, de modo mais abrangente e eficaz, a vida, a integridade corporal e a dignidade das pessoas, ameaçadas com a mera conduta, por exemplo, de alguém possuir irregularmente arma de fogo no interior de sua residência ou domicílio.

Finalmente, no tocante à equiparação legal da posse ou do porte de acessórios ou munição à arma de fogo, vale mencionar que o sujeito que for detido transportando somente a munição de um armamento de uso restrito incidirá nas mesmas penas que aquele que transportar a própria arma municiada. Não parece ser a medida mais justa, pois o projétil, sozinho, isto é, desacompanhado da arma de fogo, pode não ter idoneidade vulnerante.  Além do que, a pena para quem mantém consigo, porta ou transporta, dentre outras condutas, apenas a munição ou o acessório é elevadíssima, ou seja, reclusão, de 3 a 6 anos, mais multa, nos termos do artigo 16 da nova Lei, e, portanto, mais grave até mesmo que as sanções cominadas a alguns crimes contra a vida, tais como o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (CP, art. 122: Pena, reclusão, de 2 a 6 anos, se o suicídio se consuma); o infanticídio (CP, art. 123: Pena, detenção, de 2 a 6 anos); o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (CP, art. 124: Pena, detenção, de 1 a 3 anos); o aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (CP, art. 126: Pena, reclusão, de 1 a 4 anos); e a lesão corporal de natureza grave (CP, art. 129, § 1º: Pena, reclusão, de 1 a 5 anos). Verifique-se que a interrupção criminosa da vida intrauterina, a contribuição para que alguém ponha fim à própria vida, a ofensa à integridade corporal de outrem com sequelas definitivas, por exemplo, são comportamentos que agridem diretamente o bem jurídico, provocando-lhe efetiva lesão. Desse modo, não tem sentido punir o perigo potencial representado pela mera posse de munição ou acessório com maior rigor do que se pune o dano concreto, muitas vezes provocado pelo uso efetivo da arma e sua munição.

Por todas as razões acima expendidas, cremos que as situações tratadas pela 1ª Turma do STF merecem ser analisadas à luz do princípio da ofensividade, como forma de temperar o rigor de uma presunção absoluta e inflexível dos crimes de perigo abstrato, sob pena do cometimento de graves injustiças. Assim, a ofensividade deverá ser utilizada para rechaçar as hipóteses de crime impossível, em que o comportamento humano jamais poderá levar o bem jurídico a lesão ou a exposição a risco de lesão. Quando, de antemão, já se verifica que a conduta jamais poderá colocar o interesse tutelado em risco, não há como presumir o perigo.

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Fernando Capez é procurador de Justiça e deputado estadual, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do estado de São Paulo, mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP, professor da Escola Superior do Ministério Público e de cursos preparatórios para carreiras jurídicas

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