Por Imprensa (domingo, 21/10/2018)
Atualizado em 21 de outubro de 2018
Por Regina Carvalho | Portal Gazetaweb.com 21/10/2018
E quando o algoz não é o bandido? E quando o maior inimigo do agente da segurança é a própria rotina de trabalho? A sobrecarga nas ruas, no ofício, está levando policiais militares e civis ao estresse, à depressão, ao alcoolismo e doenças graves. Em Alagoas, nos últimos meses, o registro de mal súbito, infarto e suicídio preocupam a corporação.
Ricardo Nazário, presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Alagoas (Sindpol), alerta sobre a situação nas delegacias. Afirma que agentes estão adoecendo por causa do acúmulo de funções. Uma realidade que preocupa a entidade, que cobra a priorização do “ser humano policial” e não apenas esforços concentrados nas estatísticas sobre a redução da criminalidade.
“O assassino dos policiais hoje se chama governo do Estado, porque o governo sabe que não tem efetivo para dar atendimento à população alagoana; o governo sabe que os policiais civis trabalham em condições totalmente desumanas. Sabe que os policiais civis extrapolam a carga horária de trabalho. Estamos tendo várias vítimas policiais civis hoje com acúmulo de anos e anos no exercício da profissão”, relata Nazário.
O presidente do Sindpol acredita que tem mais policiais morrendo por causa da sobrecarga de trabalho e acúmulo de funções, do que do próprio confronto com bandidos. “O policial civil chega à delegacia de polícia e é carcereiro, tem que fazer intimações, tem que fazer investigações. Lá tem um policial ou dois, onde deveria ter oito ou dez policiais numa delegacia. De janeiro até agora tivemos sete policiais civis que morreram de infarto. Alguns em delegacias e outros no seu horário de folga”, afirma.
Ricardo Nazário ouve constantemente dos colegas de profissão relatos que apontam para o excesso de trabalho. “É um acúmulo de descaso com os policiais. A entidade vem há muito tempo já denunciando na imprensa, mandando ofício para a delegacia-geral, para a Secretaria de Segurança Pública. Há conhecimento do descaso e não se toma providência nenhuma”.
Falta investir no policial
A política de redução da criminalidade deveria passar também pelo investimento no servidor público que atua na segurança, segundo avalia o presidente da entidade. Com uma carga horária que ocupa quase todo seu tempo, com raros momentos com a família e sem cuidar da saúde, o policial está adoecendo. Situação agravada com a escala de serviço até em dias de folga.
“Cadê o investimento no material humano? Na qualificação do policial, na motivação, na valorização do policial. A desmotivação do dia a dia também acarreta no adoecimento do policial. Isso não é só na Polícia Civil não, também está acontecendo na própria Polícia Militar. É um absurdo o que está acontecendo. Se eu não te motivo, se não pago as horas extras que extrapola, se eu ainda não dou um salário condizente à função perigosa que é ser policial e ainda coloco Ronda no Bairro e a Força Tarefa, como fica a situação do policial?”, questiona Ricardo Nazário.
“Ainda abrem a boca para dizer que estão fazendo melhoria para a Segurança Pública. É uma irresponsabilidade do governo. Têm policiais que tiveram infarto e não morreram, que tiveram AVC e fizeram tratamento, fora os que estão afastados para tratamento. São inúmeros policiais pedindo afastamento no estado devido a problemas psicológicos. Estamos muito preocupados com isso aí. O governo é desumano, porque não tem o princípio para cuidar do ser humano. Tem que prezar pela vida”, acrescenta o sindicalista.
Efetivo insuficiente
Segundo o Sindicato dos Policiais Civis de Alagoas, há uma lei de 1993 que estipula o efetivo de quatro mil policiais civis. Entretanto hoje são 1.700 policiais na ativa e 600 aptos a se aposentar. Do efetivo total, são apenas 1.450 policiais civis em atividade, porque tem mais de cem afastados do trabalho policial, cedidos a órgãos, e outros licenciados por questões médicas.
“O ideal seria o triplo desse efetivo porque precisa dar celeridade nos inquéritos policiais, para quando se chegar numa delegacia e a população não esperar horas e horas para fazer um boletim de ocorrência. Aí às vezes a população não compreende que não é o policial que está despreparado e que não quer deixar de atender, é porque não tem policial para atender. Isso não é mostrado para a sociedade. Não se diz que só tem dois, três policiais. Que tem um lá em cima tomando conta de preso. A sociedade não sabe da realidade do policial. É um absurdo”, explica Ricardo Nazário.
O presidente do Sindpol conta que o último concurso para a Polícia Civil foi em 2012 para 240 vagas e que, desse total, hoje são apenas 130 policiais atuando já que o restante passou em outro concurso ou desistiu por causa da desmotivação. “O salário-base será, a partir de dezembro 3.800 reais, foi um aumento que a gente teve mas já está defasado e é para nível superior, com carga horária estipulada em 40 horas. É lei, mas nenhum policial civil exerce as 40, sempre exerce mais”, explica.
Ricardo Nazário faz um alerta. “A qualquer momento vai ter policial surtando com a arma na mão. Isso é um alerta que eu faço para a sociedade. Os policiais estão adoecendo de todo tipo de problema como o assédio moral que é gritante dentro da Polícia Civil e ainda tem o assédio sexual dentro da Polícia Civil e isso não vem à tona. É muito grave. Muitos não denunciam porque o policial anda armado e o provável infrator também. Temos uma instituição além de corporativista, é perseguidora dentro da Polícia Civil. Aí preferem mudar de delegacia. Isso é escondido da sociedade. O ser humano vive ali um drama”.
Avanço da operacionalidade sobrecarregou a PM
O presidente da Associação dos Oficiais Militares de Alagoas, coronel José Cláudio do Nascimento, conta que acompanha com preocupação os relatos de adoecimento da tropa. Também que as ações de combate à criminalidade – que tem surtido efeito positivo – está desencadeando a sobrecarga de trabalho.
“A gente tem visto com preocupação esse aumento de suicídios e mortes súbitas acontecendo em Alagoas, não só com policial militar mas também com policial civil. A gente está vendo uma maior operacionalidade das forças policiais conjuntas no sentido de reduzir a questão da violência no estado e tem dado certo, mas se a atividade policial já é estressante imagine com esse avanço na questão da operacionalidade”, argumenta o coronel.
O coronel José Cláudio lembra que existem pesquisas que apontam que a morbilidade do policial é talvez três ou quatro vezes maior do que a população geral. Isso em decorrência do nível de estresse que ele é submetido, o risco de vida, a periculosidade. “Tudo isso aumenta a questão da morbilidade e tem essa questão da predisposição para o suicídio e aquisição de doenças. Houve um aumento muito grande da operacionalidade, mas, em contrapartida, aumento de suicídios”, explica o presidente da associação.
O presidente da Associação dos Oficiais Militares lembra que o policial militar não pode ter outra atividade formal regular fora a na PM. Que os momentos de lazer são raros, não tem fim de semana, feriado, praticamente não tem uma vida familiar porque está mais na rua e na operacionalidade.
“Cada município pode até não ter lá um posto médico, mas vai ter lá um policial militar para atender a população. Somada a essa carga de trabalho que foi sobreposta ao policial militar de modo geral, ainda temos também a falta de planejamento de contratação de novos policiais, de repor o quadro que vai saindo. Temos um período de validade porque nós iniciamos a carreira muito cedo que se estende por volta dos 49, 50 anos até encerrar a sua carreira que é naturalmente compreensível porque o policial no período de trinta anos que ele passa na corporação ele tem toda uma vida dedicada à instituição, à sociedade de modo geral”, acrescenta.
Sem concurso para repor
José Cláudio do Nascimento conta que até a patente de capitão – normalmente – o policial militar atua de forma operacional. “Só passa a ter uma vida mais burocrática, mais administrativa a partir do posto de major em diante, aí já conta com uns vinte anos de serviço. Então durante vinte anos, mais ou menos, ela passa na operacionalidade. Por isso é preciso planejar isso repondo o efetivo que vai saindo, que vai deixando a corporação”, disse.
Na avaliação do coronel, o que aconteceu em Alagoas é que se passou um longo período sem fazer concurso público para a Polícia Militar. “Aí quando faz é muito grande e o que acontece é que sai todo mundo de uma só vez. Na minha época quando entrei em 1988 foram 600 policiais militares, então são 600 homens que vão sair para a reserva. Não se faz concursos fatiados, menores, para ir repondo”, lembra.
Foi um pedido das associações em 2014 – de acordo com o coronel – para que se criasse o “bico legal”, que é equivalente a Força Tarefa de hoje. Na época, por causa do chamado bico, o policial ficava vulnerável e sendo alvo fácil dos criminosos – como na segurança de estabelecimentos comerciais. “Então resolvemos um problema e criamos outro que é a sobrecarga de trabalho. A exclusividade do policial no serviço público só aumentou a ausência do policial na família. Aí muitos policiais tiram os dias de folga na Força Tarefa para complementar o salário. É uma escolha, mas acaba sendo obrigado para complementar o salário dele”, lamenta o presidente da associação.
Segundo o presidente da Assomal, o pensamento das associações não é mais a Força Tarefa como alternativa para complemento de renda. “É criar uma carga horária e a partir dessa carga horária ele seja remunerado por isso. Uma hora extra, que hoje ele não recebe. Não temos uma lei que regulamente a carga horária. Alguns estados já têm, mas no Estado de Alagoas não tem. Se for acionado aqui não tem como se negar a trabalhar”, completa.
Sobre o adoecimento da tropa, José Cláudio Nascimento lembra os relatos e casos que acompanha. Há problemas com alcoolismo, dependência química, problemas cardíacos, depressão. “Muitos estão doentes e ainda estão trabalhando. Temos muitos policiais afastados por problemas de saúde. Muitos não pedem ajuda e isso pode estourar posteriormente na sociedade, como é o caso do surto. Uma carga horária iria amenizar a situação”, segundo avalia o coronel.
Rotina de trabalho
Henrique Santos Barbosa Neto é escrivão da Polícia Civil há 27 anos. Tem 54 anos e sempre no batente, sempre atuando em delegacias. Passou por Mata Grande, Canapi, Inhapi, Piranhas, Arapiraca, Maceió e agora está em Porto de Pedras. “Me decepcionei. Quando cheguei lá vi uma situação horrível da delegacia. Me assustei. Pensei assim tantos delegados passaram por aqui e está nessa situação? Uma situação insalubre. Quando cheguei na delegacia passei dois dias só limpando, porque na primeira noite que dormi lá passei mal. Até hoje os olhos ainda estão lacrimejando por causa do ar-condicionado”, conta.
O escrivão de polícia fala que falta mais cuidado com o profissional da área de segurança. “Se me tirarem de lá (delegacia de Porto de Pedra) vão ter que me colocar numa delegacia decente, porque se me colocarem numa delegacia nojenta denuncio de novo. A população sofre e todo mundo que chega na delegacia eu me peço desculpa. Esse tempo todo de polícia que eu tenho, chegar a um ponto de encontrar uma delegacia naquela situação é uma vergonha para a Polícia Civil alagoana”, conclui.
Efetivo sobrecarregado
Edeilto Gomes, da direção do Sindicato dos Policiais Civis (Sindpol), reforça que a entidade vai para o enfrentamento quando se fala nos problemas da categoria, a exemplo da cobrança por concurso público. “Por que se o efetivo está insuficiente para atender as demandas da sociedade é claro que o efetivo que está na ativa fica sobrecarregado. E o que acontece com o policial civil e acredito com o policial militar também é o conflito de querer prestar um serviço de qualidade e não ter a condição necessária para isso”, afirma.
Na opinião de Gomes, com o número insuficiente de profissionais para prestar o serviço à sociedade, a atividade-fim do policial está prejudicada porque o agente está na delegacia tomando conta de preso. “O policial tem que se preocupar com o café da manha, com o almoço que a família vai trazer para que não entre nada e com o jantar. Por dia o policial tem de fazer 180 atendimentos por conta dos 60 presos que estão lá (diz citando como exemplo a delegacia de Penedo). O policial vai tirar o plantão com a missão de fazer BO, ir em busca de um meliante que tenha praticado um crime e não pode sair porque tem atividade o dia todo na delegacia. Isso gera um conflito nesse profissional”.
O sindicalista Edeilto Gomes também lembra que os policiais estão adoecendo por hipertensão, problemas cardíacos e alcoolismo. “Infelizmente o estado não reconhece como doença e trata o alcoolista como um cabra safado, como um desvio de conduta. É uma doença provocada pelo alto nível de estresse, falta de condições de trabalho. O usuário da Segurança Pública esculhamba o policial. É o policial que está ali na ponta que não está prestando um serviço de qualidade porque não têm condições. Aí leva a esse momento de reclamação, de explosão da sociedade”, afirma.
O Sindpol informou – ainda – que há mais de 600 policiais civis com idade para se aposentar. “Muitos acabam adiando a aposentadoria para chegar a um salário melhor”, conclui o sindicalista.
Servidores afastados
A Secretaria de Estado do Planejamento, Gestão e Patrimônio (Seplag) informou, por nota, que as perícias médicas realizadas atendem a todos os servidores vinculados à Administração Direta, Autarquias, Poder Executivo do Governo, exceto aos servidores Militares e do Corpo de Bombeiros do Estado de Alagoas.
Segundo dados da Perícia Médica do Estado, atualmente 19 servidores da Polícia Civil estão afastados em Alagoas. “A partir do momento em que o servidor é direcionado à Perícia Médica do Estado, existem recomendações que são dadas no sentido de contribuir com a melhoria do servidor. Elas são direcionadas de acordo com o tipo de problema pelo qual o servidor está lidando. É importante ressaltar, no entanto, o papel de cada órgão no aprimoramento de ações que fomentem medidas que minimizem problemas de saúde em seu quadro de servidores”, diz trecho da nota da Seplag.
A reportagem pergunta à Seplag se há previsão de convocação para substituir policiais afastados ou concurso a ser realizado. “O Governo de Alagoas entende que existe a necessidade de realização de um concurso para a Polícia Civil. Por isso, desde de abril deste ano, existe uma autorização oficial para a realização de um novo certame. Vale ressaltar que, conforme solicitado na autorização, um relatório está sendo feito no intuito de apontar as principais carências do quadro efetivo, levando em consideração os postos vagos, profissionais em atividade, aptos a se aposentar, além das previsões de aposentadoria para os próximos anos”, afirma a assessoria da Seplag.
De acordo com a Seplag, outro ponto a explicitar é que o Governo de Alagoas fez a convocação de membros da reserva técnica do concurso de 2012, em sua maioria de candidatos remanescentes ao cargo de agente de polícia. “Esse chamamento já contribuiu para que as possíveis baixas por conta das licenças fossem suprimidas”, revela trecho da nota. Sobre a quantidade de aposentados na Polícia Civil, a assessoria do órgão diz que “conforme dados da Superintendência de Administração de Pessoas, são cerca de 570 servidores aposentados”.
Mortes
Na primeira quinzena deste mês, o delegado Nilson Alcântara, 59 anos, morreu em decorrência de complicações cardíacas. Isso ocorreu na mesma semana em que o policial civil Fernando Antônio Acioli Batista, que tinha 49 anos, e trabalhava na Delegacia de Santa Luzia do Norte passou mal e acabou falecendo também. Além deles, no dia 14 de outubro, o policial militar de Alagoas Fernando, 33 anos, passou mal e não resistiu.
Cinco policiais militares cometeram suicídio entre 2017 e 2018 em Alagoas, três deles ocorreram este ano em Maceió, Arapiraca e Girau do Ponciano.