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Do poder/dever da autoridade policial de conceder a fiança

Por Imprensa (domingo, 14/08/2011)
Atualizado em 14 de agosto de 2011

Há tempos a categoria dos delegados de polícia espera por um merecido reconhecimento de sua função por parte do Poder Legislativo.


A Lei 12.403/11 (A “Lei das Prisões”), segundo alguns, corresponde a essa expectativa, pois promoveu certo um empoderamento da autoridade policial no que tange ao instituto da fiança.


Na verdade, com as alterações promovidas no Código de Processo Penal pela entrada em vigor da Lei das Prisões (em 04 de julho de 2011) houve uma sensível ampliação da fiança por parte da autoridade policial, seja no aspecto quantitativo, seja no qualitativo. Contudo, salvo alguns poucos dispositivos a mais (medidas cautelares, alterações no tocante ao procedimento da prisão em flagrante por mandato, etc), o que se observa é que foram pequenas as modificações de ordem prática para nós. Isto é, podendo mais, inovou-se timidamente o cotidiano policial.


Assim, pleitos antigos dos delegados como o fim da impossibilidade de prisão em flagrante de quem se apresenta espontaneamente, a possibilidade de aferição da tipicidade material, a possibilidade de libertação imediata de quem se encontre em situação de excludente de ilicitude ou culpabilidade, a dispensa da fiança do preso pobre, a remessa do inquérito relatado diretamente ao parquet, etc… Tudo isso passou à margem dessa oportunidade e permaneceu relegado ao plano do “e se?”.


É como dissemos. Na vida prática, à exceção da fiança (e da prisão, quando for regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça), para os delegados, pouco, mas muito pouco mesmo mudou.


E o que mudou ainda corre o risco de ser fulminado pela não atualização de nossa atuação ou por uma injusta ingerência do Poder Judiciário sobre nossa reformada atribuição de afiançar.


É sobre isso que falaremos agora.
DA DELIMITAÇÃO DO PODER/DEVER DE AFIANÇAR DA AUTORIDADE POLICIAL


Ao analisar o art. 322 do CPP, alterado pela Lei 12.403/11, falece qualquer dúvida de que a autoridade policial, em certas situações, possui o direito de conceder fiança:


Art. 322 do CPP. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.


Porém não é só.


É que sob outro giro, nos casos em que a lei determina, a concessão da fiança é concomitantemente tanto (um direito e) um dever da autoridade policial quanto um direito do indiciado. E outra não pode ser a conclusão diante da leitura do art. 5º, LXVI, CF:


Art. 5º, LXVI. Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança


É que a fiança pertence a um panteão de deveres das autoridades públicas cuja injusta abstenção em exercê-los acarreta tríplices consequências: reveste de tipicidade o crime de abuso de autoridade para o delegado, dá ensejo para que o preso exercite seu direito à representação e sujeita a autoridade policial à responsabilização pelo ato ou tentativa de ato ilícito com sanções penais, civis e administrativas (arts. 1º, 4º, “e” e 6º, da Lei 4.898/65).


E, além disso, dirigindo-se somente para as autoridades policiais, ainda há que se falar da pena autônoma (arts. 6º, § 5º, da Lei 4.898/65).


Destarte, é sobre esse inegável poder/dever da autoridade policial que passamos a nos debruçar sobre, atentando para a detecção das formas pelas quais pode ser configurada uma violação dessa novel atribuição, seja pela própria autoridade policial, seja pelo juiz de direito.
DO RETARDO/RECUSA DA AUTORIDADE POLICIAL EM ARBITRAR A FIANÇA, QUANDO POSSÍVEL, COMO FORMA DE TRANSFERIR ESSA RESPONSABILIDADE PARA A AUTORIDADE JUDICIÁRIA


Pelo acima exposto, e especialmente no que toca aos crimes de abuso de autoridade, fica bem claro que não só é indisponível como também é indeclinável o poder/dever do delegado de polícia em afiançar nos casos em que o CPP especifica.


Apesar disso, não raras vezes, ainda sob o ordenamento jurídico anterior, as autoridades policiais, mesmo podendo, deixavam de arbitrar a fiança e repassavam essa questão ao juiz.


Ocorre que o ordenamento jurídico anterior ainda não havia, de fato e, principalmente, de direito, se harmonizado com os altaneiros direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal. O que existia (e o número absurdo de presos provisórios no Brasil não nos deixa mentir) era uma inversão do princípio constitucional da presunção da inocência (art. 5º, inc. LVII, CF) e malversação do Fundamento da República consubstanciada no respeito à Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, inc. III, CF), com uso desmesurado da prisão processual como autêntica forma de antecipação da pena, isto é, a regra era a prisão, quando a Carta Magna determinava justamente o contrário.


Esse atropelo na ordem das coisas não mais pode se perpetuar nem ser tolerado ou fomentado pelas autoridades policiais.


Com o fim do sistema binário em que vivíamos (no qual só se previa a possibilidade da prisão ou da liberdade) pela introdução de alternativas ao cárcere com primazia sobre a segregação cautelar (art. 319, CPP), o aprisionamento (seja pré-cautelar, seja provisória) tornou-se medida excepcional, residual, a extrema ratio da ultima ratio (na interessante expressão de Luiz Flávio Gomes), cabendo somente prender quando não for possível relaxar a prisão em flagrante, conceder a liberdade provisória ou impor as medidas cautelares.


Neste sentido, consagrado agora, mais do que nunca, como poder e, forçosamente, como dever, a concessão da fiança quando cabível pelo próprio delegado de polícia, não havendo mais razão plausível para esquivas ou desculpas.


É dizer, não há diferença entre o retardo e a recusa injustificada do arbitramento de fiança pelo delegado. E ambas configuram o crime de abuso de autoridade acima referido. Presente o direito à fiança, deve o delegado afiançar.


Óbvio que, situações haverão, em que a autoridade policial poderá recusar-se a exercitar o poder/dever de afiançar, todavia, sempre de forma justificada. Exemplo disso é o caso, em nossa opinião, da participação de menor importância (art. 29, § 2º, CP), cuja interpretação ou prova, no exíguo tempo de 24 horas, pode prejudicar a determinação de fiança policial.



DA CORREÇÃO JUDICIAL DA INSUFICIÊNCIA OU DO EXCESSO DA FIANÇA POLICIAL E DA DISPENSA DA FIANÇA


Não se diga que, por se referir o art. 335 do CPP somente aos casos de recusa ou retardo, está desautorizado o magistrado a rever a fiança. Isto por que é claro que a fiança concedida pelo delegado de polícia em franco desatino a situação que a ensejou, seja por que é irrisória, seja por que é exorbitante, pode e deve ser prontamente corrigida e isto não configura intromissão judicial alguma.


Entretanto, mesmo havendo o pedido (na verdade, desde que ocorra o pedido), ao que nos parece, o reforço, a mitigação ou a dispensa da fiança arbitrada pelo delegado deve ser alvo de redobrados cuidados por parte do juiz.


Primeiro, por que qualquer alteração na fiança policial fixada deve ser muito bem fundamentada, principalmente nos casos de redução e dispensa da fiança, sob pena de malferir os objetivos da destinação do instituto, previstos, como já se disse acima, no art. 336, CPP.


Segundo, por que havendo a concessão de fiança policial de forma justa (ou seja, adequada e proporcional), não há que se falar em modificação ou extinção posterior, sob pena de reiteradas “correções judiciárias” fulminarem a vontade do legislador que é a de que pode e deve o delegado afiançar em certos casos.


Há de existir comprovadamente a necessidade de reforma da fiança policial. Não vemos problema na exasperação da fiança pelo juiz. Entretanto, soa acintosa (invasiva, arbitrária e ilegal) a redução ou dispensa da fiança concedida pela autoridade policial que obedece normalmente aos ditames do art. 326, CPP ou ainda, nos casos em que o preso possui situação econômica que afaste a incidência dos arts. 325, § 1º, incs. I e II e 350, CPP.


É claro que não há como assegurar a exata relação de identidade matemática entre a fiança judiciária e a fiança policial diante do mesmo caso. A interpretação dos fatos varia de pessoa pra pessoa. Todavia, da mesma forma que não se pode admitir a fiança absurdamente estipulada na polícia também não se deve aceitar a injusta reforma judicial de uma fiança policial que pode até não se mostrar a mais acertada, mas que nem de longe escandaliza a lógica e o bom senso comum.
Destarte, a regra deve ser o respeito pela fiança policial, só cabendo a sua revisão pelo juiz, de forma fundamentada, quando houver evidente desacerto na forma de sua quantificação, é dizer, quando o delegado arbitrar fiança a quem não pode pagá-la, quando o pagamento do instituto comprometer seriamente a sobrevivência do preso e de sua família ou quando a fiança não revelar uma relação de proporcionalidade entre a infração e o dano causado à vítima ou sua família.


Nos demais casos, se a situação econômica do preso tornar (ainda que com algum sacrifício) perfeitamente possível o adimplemento da fiança policialmente determinada ou se o valor desta não for patentemente ínfimo em relação ao dano provocado pelo beneficiário, não há razão nem justiça em modificar a fiança arbitrada pela autoridade policial.


Abaixo apresentamos um roteiro sintético de como deveria ser a aferição judicial da legalidade da fiança arbitrada policialmente.
DA SUBSTITUIÇÃO DA FIANÇA CONCEDIDA PELO DELEGADO DE POLÍCIA PELA FIANÇA JUDICIÁRIA COMO FORMA DE VIOLAÇÃO DO PODER/DEVER DE AFIANÇAR DA AUTORIDADE POLICIAL


De forma bem sintética:


1) Se é verificada a ausência das hipóteses de admissibilidade, dos pressupostos e dos fundamentos da prisão preventiva, contidos, respectivamente, nos arts. 312, 313 e 282, § 4º do CPP:


Art. 312 do CPP. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.


Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º).


Art. 313 do CPP.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:


I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;


II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal;


III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;


Parágrafo único.  Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.


Art. 282, § 4º, CPP. No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único).


2) Se a infração penal é afiançável pelo delegado, nos termos do art. 322 do CPP :


Art. 322 do CPP. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.


3) Se houve pronta concessão da fiança pelo delegado de polícia ao invés de recusa ou retardo, isto é, se não ocorreram as situações que ensejariam a aplicação do parágrafo único do art. 322 do CPP :


Art. 335, CP.  Recusando ou retardando a autoridade policial a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.


4) Se não houve um grave e evidente erro da autoridade policial no tocante às balizas do art. 326 do CPP, e especialmente se levando em conta a destinação da fiança, prevista no art. 336 do CPP:


Art. 326 do CPP. Para determinar o valor da fiança, a autoridade terá em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento.


Art. 336 do CPP. O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado.


5) Se a situação econômica do preso afasta, ainda que com alguma dificuldade, a incidência do art. 350 do CPP :


Art. 350 do CPP. Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando ser impossível ao réu prestá-la, por motivo de pobreza, poderá conceder-lhe a liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328. Se o réu infringir, sem motivo justo, qualquer dessas obrigações ou praticar outra infração penal, será revogado o benefício.


6) E, principalmente, se em face da inércia da jurisdição observa-se que não houve pedido…


SE TODAS AS PRESCRIÇÕES SÃO OBEDECIDAS, DESCABE FALAR EM CASSAÇÃO DA FIANÇA POLICIAL OU SUBSTITUIÇÃO DESTA POR OUTRA, ARBITRADA PELO MAGISTRADO.


CONCLUSÃO


A Lei 12. 403/11 promoveu, salvo no tocante à fiança (e um par de outros institutos, como as medidas cautelares), poucas mudanças no cenário policial.


A prisão em flagrante deixa de ser uma espécie de prisão provisória, passando a ser um prisão efêmera, subcautelar, destinada a apenas permitir ao juiz que, no exíguo prazo de 24 horas, decida pela liberdade provisória, pela aplicação de medidas cautelares ou pela conversão da prisão em flagrante em preventiva (art. 310, CPP).


Aliás, conforme o art. 283 do CPP, atualmente só temos como provisórias as prisões preventiva, temporária (Lei 7.960/89) e domiciliar (arts. 317 e 318 do CPP).


As medidas cautelares podem ser alvo de representação do delegado de polícia (art. 282, § 2º, CPP), pelo que é perfeitamente extensível o raciocínio delineado para a fiança enquanto direito ou dever para a representação das medidas cautelares. Explica-se: como a preventiva só é decretada em último caso (inteligência dos arts. 282, § 4º c/c § 6º do CPP), se for (ou não) caso de concessão de fiança, cabe ao delegado representar pelas cautelares, haja vista que elas são cumuláveis e substituíveis entre si (art. 282, § 1º e § 5º do CPP).


Assim, a esses novos deveres inafastáveis a autoridade policial deve obedecer e resguardar, cabendo àquela não se quedar inerte da concessão do benefício a que seja de insofismável direito do preso.


Sobre o autor


Ivens Carvalho Monteiro


Delegado de Polícia Civil do Estado do Pará


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