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As razões pelas quais o Brasil precisa de um novo modelo de polícia

Por Imprensa (quarta-feira, 29/02/2012)
Atualizado em 29 de fevereiro de 2012

Laranjas cortadas não param em pé

 As razões pelas quais o Brasil precisa de um novo modelo de polícia

  

As recentes greves e mobilizações de policiais em vários Estados são um reflexo tardio de uma crise profunda que ultrapassa em muito as reivindicações salariais.

Para se compreender a natureza dos fenômenos em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas polícias que atuam nos Estados (Civil e Militar) possuem suas origens respectivas em “campos” (no sentido de Bourdieu) determinados – que não representam especificamente os desafios da segurança pública: as Polícias Civis emergiram do campo do Direito, e as Polícias Militares, do campo da Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência Geral de Polícia da Corte e, um ano após, da Guarda Real da Polícia da Corte, por Dom João VI.

 

Desrespeitados como cidadãos, obrigados a um cotidiano embrutecedor e sem qualquer apoio psicossocial, desvalorizados profissionalmente, desestimulados ao estudo e à reflexão e, não raro, “adestrados” pelo autoritarismo, estes policiais irão para as ruas nas piores condições, tendendo a reproduzir a mesma desconsideração em suas relações com o público, destacadamente quando tratarem com pobres e marginalizados. O círculo de estupidez e ineficiência, então, se completa com os resultados conhecidos.

 No passado, alguns dos críticos do modelo levantaram a bandeira da unificação das polícias. Uma sugestão plena de boas intenções, mas completamente equivocada.

 Múltiplas estruturas de policiamento conformam uma das características mais importantes dos modelos contemporâneos de segurança pública na grande maioria dos países democráticos. Inglaterra e País de Gales possuem 43 forças policiais autônomas; a Noruega possui 54 polícias distritais; a Escócia, oito polícias regionais; os Estados Unidos possuem pelo menos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica, 2.359; o Canadá tem 450 polícias municipais, além de várias forças provinciais e da Royal Canadian Mounted Police. Poucas nações possuem polícia única (Sri Lanka, Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polícias menores são mais facilmente administradas e avaliadas. São também mais ágeis e tendem à especialização. Instituições policiais enormes, pelo contrário, são de difícil manejo e supervisão.

 Também por isso, eventual unificação das polícias no Brasil tenderia a somar os defeitos das instituições que temos, subtraindo suas virtudes. Por fim, a unificação agregaria risco considerável à democracia, incluindo a possibilidade de “emparedamento” do Estado por demandas corporativas.

O caminho da reforma, pelo contrário, deve estimular o surgimento de novas instituições policiais, além de integral autonomia aos Bombeiros e às perícias; tendência que – apesar dos limites constitucionais – já se impõe no Brasil, que formou uma Guarda Nacional e cujos municípios têm constituído Agências de Fiscalização de Trânsito e Guardas Municipais (que, embora sem este nome, polícias são). O fundamental é que todas elas tenham o ciclo completo de policiamento (o que no Brasil só a Polícia Federal possui) e carreiras únicas (uma única porta de entrada em cada polícia) como no resto do mundo. Esta é a base para que possamos ter polícias eficazes e para que as noções de segurança sejam fundadas em evidências científicas e não na cultura institucional do atraso e do preconceito.

 Este é também o caminho para que tenhamos polícias comunitárias acostumadas ao controle social e aos processos de prestação de contas e responsabilização pública (accountability).

 Para que a existência de várias polícias com ciclo completo não seja redundante e não implique novas disputas, deve-se optar por um dos seguintes caminhos: ou se estabelece uma base distrital para cada polícia (modelo britânico) ou definimos responsabilidades distintas para as polícias de acordo com tipos criminais (o que caracteriza, em grande parte, a experiência americana). Tendo presente a história centenária das polícias militares e civis no Brasil, seria de todo desaconselhável que elas fossem reorganizadas para atuar a partir de bases distritais exclusivas. O mais adequado seria a divisão de vocações por tipos penais. Assim, por exemplo, as Polícias Civis poderiam tratar de crimes contra a vida, sequestros, crimes sexuais, tráfico de drogas e crimes do “colarinho branco”, enquanto as Polícias Militares poderiam cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e roubos) e da manutenção da paz pública. Em um sistema do tipo, as Guardas Municipais poderiam responder aos

conflitos de “baixa densidade” como arruaça, vandalismo, disputas entre vizinhos, importunação ao sossego, violência doméstica etc. Uma divisão do tipo tornaria possível que tivéssemos um sistema de segurança pública no Brasil, encerrando a pré-história das polícias brasileiras.

 Reformas desta natureza exigem, por óbvio, um amplo esforço político, vez que nosso modelo de polícia foi, inacreditavelmente, inserido na Constituição Federal, notadamente em seu art. 144. Tendo em conta a destacada inaptidão do Congresso Nacional para reformar o que quer que seja e o notório desinteresse do governo federal sobre este tema, deve-se reconhecer que as perspectivas não são alentadoras. Os governadores poderiam constituir esta agenda. Afinal, é nos Estados que a crise se instala e – observados princípios gerais – se deveria permitir margem de autonomia aos entes da federação para que pudessem reformar e/ou instituir suas próprias polícias. Seja como for, nunca a crise do modelo de polícia no Brasil foi tão evidente. O que não nos garante qualquer solução. Afinal, convivemos com uma realidade política na qual tem sido preferível não pensar, não discutir e não fazer. Só por isso, as greves e protestos dos policiais têm um sentido histórico. Em seus

acertos e em seus erros, as mobilizações introduziram um dado novo: os policiais exigem mudanças. Resta saber se alguém saberá interpretar este sentimento.

 MARCOS ROLIM*

*Professor da cátedra de Direitos Humanos do IPA, autor de “A Síndrome da Rainha Vermelha” (Zahar/Oxford University, 2006)

 REFERÊNCIAS

KARNIKOWSKI, Romeu Machado. De Exército Estadual à Polícia-Militar: o Papel dos oficiais na policialização da Brigada Militar (1892 – 1988). Porto Alegre; Tese

de Doutorado: Sociologia, UFRGS, 2010.

MEDEIROS, Mateus Afonso. Aspectos Institucionais da Unificação das Polícias no Brasil. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, no 2 : 271-

296; 2004.

MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos e CONSTANTINO, Patrícia. Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in)

segurança pública. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(11): 2767-2779, 2007.

RAMOS, Sílvia. ROLIM, Marcos e SOARES, Luiz Eduardo. O que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça/SENASP/PNUD.

Relatório de pesquisa. 2009.

SEGURANÇA E CIDADANIA

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