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Estados e municípios aumentam a pressão para mudar os termos dos contratos dos quase R$ 500 bilhões em dívidas que têm com a União

Por Imprensa (segunda-feira, 10/11/2014)
Atualizado em 10 de novembro de 2014

Em março passado, os 26 estados e o Distrito Federal deviam à União R$ 416.599.605, segundo o Banco Central. Do total, 76,8% estão concentrados em quatro estados, justamente os de maior poderio econômico: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A cidade de São Paulo é a terceira maior devedora individual do Tesouro Nacional, acrescentando outros R$ 57 bilhões ao valor. Portanto, trata-se de um contencioso financeiro próximo de meio trilhão de reais, construído, em grande parte, a partir de contratos de renegociação assinados entre os estados e o governo federal, no final do século passado.

Passados 15 anos, estados e municípios reivindicam uma revisão dos critérios usados nos acordos, que estariam sobrecarregando fortemente as finanças dos entes federados, prejudicando ­sobremaneira a capacidade de ­investimento deles.

As profundas transformações econômicas por que o Brasil passou na década de 90 estão na gênese da atual situação de dívidas dos estados e dos maiores municípios brasileiros com o Tesouro Nacional. A adoção do Plano Real, em 1994, fez a inflação despencar de patamares anuais estratosféricos para décimos de ponto percentual ao mês. O resultado positivo do plano, e de outras medidas tomadas nos anos seguintes, foi obtido graças a um remédio amargo. As elevadas taxas de juros, parte essencial da estratégia para controlar os preços nos primeiros anos do real, não somente eliminaram a possibilidade de corroer (com a inflação) o valor real das despesas públicas como também responderam pelo rápido aumento das dívidas — entre 1989 e 1998, saltaram de 5,8% para 14,4% do produto interno bruto.

A União entendeu que, sem sanear as finanças dos estados, a estabilização econômica conquistada pelo Plano Real estava fadada ao fracasso. “O governo federal se convenceu de que teria de assumir um papel ativo na reforma fiscal dos estados para impedir uma crise sistêmica”, escreveram os economistas Fábio Giambiagi e Márcio Ronci, no estudo As Instituições Fiscais Brasileiras: as reformas de Cardoso 1995–2002, publicado em 2004 pelo Fundo Monetário ­Internacional (FMI).
Dívida assumida
Durante cinco anos, a equipe do então presidente Fernando Henrique Cardoso negociou um acordo com os estados e os principais municípios, refinanciando as dívidas em troca de mudanças nas práticas tributárias e fiscais daqueles entes federados. O resultado foi a Lei 9.496/1997, que instituiu o Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados. Como o mercado era credor da maior parte da dívida estadual, o que aconteceu foi que a União assumiu o pagamento do passivo, a juros de mercado, tornando-se, assim, credora dos estados.
A renegociação de 1997 resultou em contratos firmados até 1999 entre a União e cada estado, à exceção de Amapá e Tocantins. Envolveu 77,9% da ­dívida líquida dos estados e municípios ao final de 1998, que equivalia a 11,3% do PIB. Nos anos seguintes, foram acrescidos na negociação os valores negociados no âmbito do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária, por meio do qual se processou a venda ou fechamento de quase todos os bancos estaduais.

Os contratos assinados previam prazo de pagamento de 30 anos, juros que variavam de 6% a 9% anuais e atualização monetária calculada mensalmente com base no IGP-DI. Além disso, estabeleceu-se um limite de comprometimento da receita líquida real (RLR) do estado ou do município com o pagamento do serviço da dívida (fixado entre 11,5% e 15%, dependendo do contrato). À época, pareciam boas condições. Na década de 1990, a taxa básica de juros girava em torno de 45% ao ano e a opção pela correção da dívida pelo IGP-M (hoje IGP-DI), então baixíssimo, e até 9% de juros anuais fazia sentido. Porém, com a redução da taxa básica de juros (Selic) nos anos recentes, a situação se inverteu.

“Supunha-se também um cenário macroeconômico favorável. Com crescimento econômico adequado, as receitas estaduais subiriam em ritmo suficiente para que, dado o limite para os desembolsos, os pagamentos pudessem cobrir juros e amortizações. Comporia o quadro, também, a evolução favorável do IGP-DI, de tal modo que a correção do passivo não fosse pronunciada. O resíduo até poderia ser positivo ao longo da vigência do contrato, mas zeraria ao término do prazo e, se isso não ocorresse, o saldo restante seria refinanciado por um prazo de até dez anos”, explica em seu estudo Dívida Estadual o consultor legislativo do Senado Josué Alfredo Pellegrini.

Bola de neve
Porém, justamente essas condições dos contratos têm sido hoje apontadas como responsáveis pela sobrecarga nas finanças dos entes federados e por uma elevação descabida do saldo devedor, mesmo após 15 anos de abatimentos mensais. Reformar as regras que nortearam a renegociação das dívidas e recalcular o débito atual, com base nos novos parâmetros, são as principais reivindicações, apresentadas aos senadores em audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), em março deste ano.

O presidente da CAE, ­Lindbergh Farias (PT-RJ), deixou claro o apoio dos senadores à revisão dos contratos, admitida pelo próprio governo federal. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei complementar (PLP 238/2013) do Executivo que oferece redução dos juros anuais para 4%, indexação ao IPCA e dez anos adicionais para a quitação do débito. Mas outras propostas diminuem ainda mais os encargos, inclusive a parcela de receita que os estados e municípios são obrigados a reservar para ir ­quitando o débito.

Segundo estudo apresentado na CAE pela Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), em 1998 o valor do empréstimo da União aos estados era, de acordo com o Balanço Geral da União (BGU), de R$ 93,2 bilhões. Desde então, os estados já pagaram R$ 158 bilhões ao longo de 13 anos de prestações mensais. Mesmo assim, o saldo devedor saltou para R$ 369,36 bilhões (dezembro de 2011).
“Se atualizarmos os valores pelo índice oficial da inflação (IPCA) no período citado ­acima (133%), o montante original da dívida era de R$ 217,64 bilhões e os pagamentos somaram R$ 205,69 bilhões. O problema é que ainda existe um saldo devedor de R$ 369,36 bilhões. Em números reais relativos, os estados pagaram 95% e ainda estão devendo 170% do valor recebido”, afirma João Pedro Casarotto, da Febrafite.

A culpa dessa situação, diz o especialista, é das cláusulas contratuais, e a variação do IGP-DI é apenas um dos problemas. O acordo menos oneroso assinado por um estado, que adotou o IGP-DI mais 6% de juros anuais, teve encargos totais de 589% entre 1998 e 2011. “Se descontarmos a inflação medida pelo IPCA, temos que a União tomou dos estados 456%. Isso significa uma cobrança de juro real acima da inflação de 14% ao ano”, calcula Casarotto. Se comparada ao produto interno bruto (PIB), porém, a dívida vem caindo ao longo dos anos, muito em função do esforço feito pelos estados e municípios para o pagamento. De dezembro de 2001 a dezembro de 2011, o total caiu 6,6 pontos percentuais do PIB (uma redução de 37,5%). ­Porém, em ­termos reais, a queda foi bem menor: 8,61%, justamente porque o saldo devedor é mensalmente corrigido pelo IGP-DI.

A mobilização em torno de mudanças nos termos dos contratos ganhou força ainda maior em maio, com um ato promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília. A OAB lidera um movimento que já tem a adesão de 120 entidades da sociedade civil, reivindicando a revisão dessas cláusulas.

Governadores e prefeitos têm organizado diversos encontros em Brasília para arregimentar apoio político às reivindicações. O presidente do Senado, Renan Calheiros, garantiu apoio à proposta e lembrou a aprovação, pelo Plenário, do refinanciamento de dívidas dos estados, municípios e Distrito Federal com a Previdência Social. “A medida desafoga as finanças da maioria dos municípios brasileiros”, disse Renan Calheiros.
Para efetuar os pagamentos e não correr o risco de sofrer as pesadas sanções previstas nos contratos — inclusive suspensão dos repasses de recursos ­constitucionais —, os estados apertaram o cinto. Desde a renegociação com a União, os governos estaduais responderam por cerca de um terço do esforço fiscal do setor público em busca das metas de superávit primário, revelou Weder de Oliveira, ministro-substituto do Tribunal de Contas da União (TCU), presente no debate na CAE.

Os estados querem, cada vez mais, recorrer a empréstimos com bancos privados, nacionais ou até estrangeiros, que oferecem condições muito mais vantajosas, com juros que chegam à metade dos encargos cobrados nos contratos com a União.

A própria Secretaria do Tesouro Nacional (STN) reconhece o esforço. “Independentemente de ideologias, de posições político-partidárias, da existência de maiores afinidades, 25 governos estaduais têm procurado enfrentar desafios, mudar procedimentos administrativos e estabelecer mecanismos que possibilitem superar as limitações objetivas para a ­realização de políticas públicas, sem deixar de observar a necessária disciplina fiscal”, avalia a STN em seu site.
Pacto federativo
É esse esforço desigual que vem sendo condenado pelos defensores da repactuação. Além de questionarem as origens dessa dívida e as cláusulas dos contratos, instituições não governamentais como a Febrafite e a Auditoria Cidadã da Dívida lembram que, entre 2002 e 2011, a União desembolsou R$ 1,8 bilhão bruto para pagar as parcelas vencidas das dívidas assumidas com os contratos de renegociação. Já os estados gastaram 83 vezes mais pagando o que devem ao Tesouro (veja infográfico abaixo).

Parte essencial do debate se concentra, justamente, na efetiva capacidade dos entes federados de seguirem destinando tantos recursos para o abatimento da dívida renegociada com a União. A fria análise dos números indica que, sacrifícios à parte, é possível honrar os contratos na forma como estão. Em seu estudo, o consultor legislativo Josué Pellegrini, mestre e doutor em economia pela Universidade de São Paulo (USP), lembra que essa dívida teve uma queda de 6,4 pontos percentuais em relação ao PIB entre 2001 e 2011.

“Nesse ritmo, a dívida tornar-se-ia pouco relevante em cerca de 15 anos, perfazendo ao cabo, aproximadamente, os 30 anos originalmente contratados na renegociação de 1997. Em quaisquer desses cenários está implícita a continuidade do esforço fiscal dos estados, retratado na forma de superávits primários”, argumenta Pellegrini.

Weder de Oliveira, do TCU, em uma análise “do ponto de vista do credor” (o Tesouro Nacional), afirmou que “não há evidências de risco de crédito para a União”, com exceção do município de São Paulo, que, pelas regras atuais, não teria como pagar o saldo devedor ao final do contrato, nem mesmo em dez anos. “Sabemos do esforço fiscal que isso [o pagamento da dívida] tem imposto aos estados, dadas as mudanças das condições de juros e inflação”, disse.

Já o economista Roberto Piscitelli, professor da Universidade de Brasília (UnB), critica o paradoxo de o governo ter um comportamento muito mais ­tolerante em relação à iniciativa privada do que com os próprios entes federados. “Eu diria que hoje o acordo da dívida é uma relação meio colonial, que lembra um pouco aquilo que a gente tanto criticou no passado e denunciou nas relações entre os países e o resto do mundo”.

Entre os senadores, as críticas são unânimes. Presente ao ato público na OAB, o senador Aécio Neves ­(PSDB-MG) disse que a renegociação das dívidas é passo obrigatório na reconstrução do pacto federativo. Ele criticou a “absurda e perversa concentração de receitas nas mãos da União” e lembrou que empresas privadas que recorrem ao BNDES recebem recursos subsidiados em condições muito mais favoráveis do que os estados e municípios recebem da União.

“Essa situação não pode continuar do jeito que está, sob pena de termos uma Federação absolutamente fragilizada, violentada no seu espírito de convivência fraterna com os demais entes federativos”, disse a senadora Ana Amélia (PP-RS), que também participou do evento na OAB. “Seja para os estados, seja para os municípios, estamos numa situação extremamente difícil. Faz-se necessária, com urgência, uma forma de reescalonar as dívidas dos municípios e dos estados, ainda mais agora, agravadas com a decisão do Supremo Tribunal Federal”, defendeu Eduardo Suplicy (PT-SP), fazendo alusão ao pagamento dos precatórios.

O manifesto pela revisão da dívida, assinado pela OAB e outras 120 entidades, lembra que, pela Constituição, todas as esferas políticas — União, estados e municípios — devem respeitar mutuamente os seus limites de autonomia, em harmonia. Esse princípio constitucional está sendo colocado em xeque devido às condições onerosas de acordos de refinanciamento das dívidas.

“Caso tivesse sido cobrada pela União a mesma remuneração nominal que o BNDES tem cobrado de empresas privadas (de 6% ao ano em média), essa dívida de R$ 369 bilhões seria, na realidade, de apenas R$ 2 bilhões em 2011 e já estaria completamente quitada em 2012”, afirmou o presidente da OAB, Marcus ­Vinicius Coêlho.
“De imprescindível decisão de política econômica, o empréstimo foi transformado em uma reles operação bancária comercial. A União realizou um grande negócio, pois ao mesmo tempo em que fez uma rentável aplicação financeira, transformou os estados federados em eternos dependentes de uma dívida interminável”, acusa ­Casarotto.

O Índice Geral de Preços — Disponibilidade Interna (IGP-DI) é calculado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e registra a inflação de preços que afetam diretamente as atividades econômicas localizadas no território brasileiro, de matérias-primas agrícolas e industriais até bens e serviços finais. É formado pelo IPA, IPC e INCC, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Esses indicadores medem itens como bens de consumo (um exemplo é alimentação) e bens de produção (matérias-primas, materiais de construção, entre outros). Entram, além de outros componentes, os preços de legumes e frutas, bebidas e fumo, remédios, embalagens, aluguel, condomínio, empregada doméstica, transportes, educação, leitura e recreação, vestuário e despesas diversas (cartório, loteria, correio, mensalidade de internet e cigarro, entre outros). É usado no reajuste de tarifas públicas, contratos de aluguel e planos e seguros de saúde (nos contratos mais antigos).

Receita líquida real é a referência para o limite de pagamento da dívida de estados e municípios renegociada com o Tesouro Nacional e parâmetro dos Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados. Leva em conta a receita de 12 meses, excluídas as receitas de operações de crédito, alienação de bens, transferências voluntárias ou doações recebidas para despesas de capital e, no caso dos estados, as transferências aos municípios, por participações constitucionais e legais. Em 2001, as transferências ao Fundef foram excluídas do cálculo. O conceito foi criado pela Lei 9.496/1997.

O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é utilizado pelo Banco Central como medidor oficial da inflação do país. Coletado pelo IBGE, foi criado para medir o custo de vida de famílias com renda mensal de 1 a 40 salários mínimos, residentes em 11 capitais. São pesquisados os preços para o público final do comércio e serviços (inclusive públicos), totalizando 465 itens, em alimentação e bebidas, artigos de residência, comunicação, despesas pessoais, educação, habitação, saúde e cuidados pessoais, transportes e vestuário.

http://www.senado.gov.br

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